quadrinhos

Death Note – religião, política e mídia

Agir como um deus faz de  Kira um inocente, mas manipular sua religião de morte com a mídia e a politica terrena, ressalta sua humanidade.

Agir como um deus faz de Kira um inocente, mas manipular sua religião de morte com a mídia e a política terrena, ressalta sua humanidade.

Death Note é um manga criado por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata, o qual contempla o embate e os conflitos entre duas mentes geniais no campo criminoso: o assassino e o detetive. O diferencial esta no fato do assassino ter ao seu lado um caderno que um deus da morte “deixou” neste mundo humano e um questionável senso de justiça.

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Entre muitas situações apresentadas e trabalhadas pelo quadrinho, o envolvimento entre política, religião e mídia toma formas realistas peculiares. Como alguém capaz de matar apenas por escrever o nome de um homem em um caderno, Raito Yagami, o assassino – apelidado de Kira -, acaba sendo aclamado como um deus justo na terra, arrebanhando seitas e fieis ao redor do globo. Ele usa isto a seu favor e ao deleite de oportunistas líderes doutrinários. Personagens como o diretor de TV Hitoshi Demegawa são comuns no meio religioso-midiatico da vida real.

O cenário de Death Note é uma réplica fantástica do mundo real: as religiões atreladas a mídia de massas, ganhando poder social e de decisão nas mais variadas nações, ocidentais e orientais. Se a coisificação do homem o descarta do processo político e cultural, alienando-o, o “endeusamento” de um indivíduo o catapulta para uma condição privilegiada e arbitrária no sistema social. Notemos o fenômeno daqueles que se dizem enviados, pontes entre a vontade divina e o povo, mandando e desmando sobre a palavra de seus “deuses” – recordemos da cena onde Kira manipula seus seguidores para impedir a fuga do detetive Near de sua agência.

O discurso do assassino/justiceiro/deus Kira é em muito disto, acompanhado de orgulho e de uma curiosa essência de inocência em seu pensamento de “Deus de um novo mundo”, obliterando-o de sua própria falseabilidade dogmática e prejudicial no meio social. Comum hoje em dia, fora dos quadrinhos.

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artes, quadrinhos

Manga é coisa séria

Manga é coisa para criança” traduz a mesma ignorância dita sobre desenhos e outros quadrinhos promovida por quem não está colocado no assunto e a importância desses materiais e suas mensagens ao público, além de que esta posição de rejeição acaba em isenção de uma atenção sobre o que se anda lendo, algo que nem sempre se trata de criancice.

A abordagem temática dos mangas iconizou-se na “infantilidade” de julgamento do grande público que conheceu apenas os mangas de luta para meninos e os de garotas para garotas. Essa polarização encontra uma serie de motivos na cultura popular brasileira e mundial pelo fato do referencial americano: o traço dos anos 40 ditou o cartoon e os quadrinhos para o publico infanto-juvenil, mesmo com o amadurecimento temático e formal ao decorrer das décadas, e a produção internacional ligada pela globalização cultural e mercadológica.

Os quadrinhos nipônicos são direcionados e divididos (um tanto arbitrariamente a titulo de nichos) como todas as expressões culturais: retratos de sociedade para públicos diferenciados. As temáticas infantis são mais conhecidas em seus valores de amizade e superação de obstáculos na nossa Terra Xuxa. Bem como a categorização juvenil e adulta atente a realidade desses grupos, com seus gostos e maturidades. Lembremos bem que essa divisão é visando o consumidor, pois o alcance de maturidade é inerente a idade, bem como o gosto.

Obras como Naruto, One Piece, Dragon Ball e muito do produzido pelo estúdio CLAMP satisfazem o gosto geral, pois abordam despretensiosos assuntos com o eterno infantil mundo dos “super-poderes” e crises de amizades, mas não perdem em enredos que mantém o público em entusiasmantes esperas. Mesmo títulos juvenis como Bersek ou adultos, Crying Freeman, possuem suas expectativas espelhadas em seus leitores.

A retratação de um cotidiano criminal futurístico em Ghost in The Shell; a precariedade da existência humana em Ergo Proxy; a filosofia moderna saturada pela tecnologia em S.E. Lain ou simplesmente o inocente e maniqueista discurso de justiça e surpreendente inteligência de Death Note. Exemplos como este são o suficiente para o estimulo da leitura e debate em salas de aulas há calorosas discussões em rodas acadêmicas, ou apenas descontração inteligente do ócio criativo – tão valorizado pelos gregos.

Quanto à academicidade da Arte Sequencial, Will Eisner coloca assertivas esclarecedoras: a preocupação do autor em trabalhar seriamente sua obra, seu trabalho leva ao trato digno dessa arte. Isso visando o autor, pois Eisner reclama meandros pedagógicos e sociais para defender a arte – vide seu livro “Quadrinhos e Arte Sequencial” (1985).

A atenção relevante sobre os quadrinhos japoneses reside na importância com que ele consegue buscar temáticas e formas de levar ao leitor uma questão cotidiana, uma expectativa e uma fantasia. O mister dos mangas é a sua fluída comunicação com o público.

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quadrinhos, tv-seriados

O mundo de Kishin e a nossa realidade

Soul Eater, manga da Shonen Gangan – mesma revista de Fullmetal Alchemist -, de autoria de Atsushi Ohkubo, tem o enredo entorno de uma escola, dirigida por um Deus da Morte (Shinigami) que forma alunos para caçar almas errantes de seu destino – a morte – além de eventuais peripécias bruxescas. O manga ainda se encontra em publicação, mas possui uma versão animada acabada.

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A insanidade de Kishin Asura deforma-o. - Arte de Alice Sinitsyna

A insanidade de Kishin Asura deforma-o. – Arte de Alice Sinitsyna

“Um corpo saudável necessita de uma mente saudável e de uma alma saudável. Esse sintagma recitado no início dos episódios do anime revela o teor normativo da espiritualidade ali tratada, como também na atmosfera do manga: o equilibro natural do universo visto pelo interior.

No enredo, uma alma que não aceita a morte por medo e renega-a se torna um “ovo de kishin”, rompendo com o equilibro natural e caminhando para se tornar uma criatura regida pela insanidade do medo constante. A insanidade da personagem Asura, a primeira alma errante, é “ressonante” sobre a normalidade do mundo, gerando ilusões aterrorizantes nas pessoas. Tais ilusões, vindas de suas próprias mentes, a partir da estimulante presença do kishin original – isto lembra que o medo está em nós e cabe-nos enfrentá-lo.

A insanidade de kishin é, em suas palavras, uma alternativa ao mundo cheio de regras de Shinigami. Sua loucura o inibe do medo ao negar a realidade da existência dessas coisas. Um “super homem” é então criado. O mundo regido por ele se torna seguro ao negar a ordem e elencar o medo como hábito, banalizando-o; nesta nova realidade nada muda. A firmeza dele esta na supressão do desconhecido em um estado de insanidade total.

Shinigami é categórico e óbvio: um mundo assim não tem outra coisa senão o medo; não há realidade em nada, apenas a espera da desilusão  A rejeição da morte leva ao temor do impreciso amanhã, do desconhecido e não controlado por nossas próprias forças.

Chrona em ataque desvairado.

Chrona em ataque desvairado.

Um exemplo das ambições desta percepção de mundo é a desenvoltura da personagem Chrona. Sua má educação familiar dirigiu-o a um treinamento que o obrigou, como única saída  a encarar as coisas com ressalvas e amedrontamento, com o único objetivo de torná-lo um futuro kishin. Suas frases constantes na série são: “eu não sei como eu deveria lidar com isso…”, “eu não saberia como lidar com isso se…”. Chrona é inseguro, rendendo-se, então  a insanidade para encarar a desconfiança cotidiana, esquecendo o medo enquanto mergulhado nesse sentimento de loucura. Contudo torna se cada vez menos capacitado de lidar com a realidade sem se encontrar em modo defensivo.

Chrona caminha fiel nos passos de seu escolhido deus, Asura Kishin, rumo à insanidade e a suposta segurança daquele mundo.

Como a arte conversa com a vida, a lógica demonstrada por Ohkubo em Asura esta disseminada na realidade do leitor e do autor, fora das fronteiras dos quadrinhos com mesmas formas e cores, em discursos sensíveis ou duros, contando cada vez com mais multidões de adeptos.

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literatura, quadrinhos

Gemma Bovery

Aquarela completa de capa de Emma Bovery

De semelhante nome e com iguais fados em sua trajetória narrativa, a personagem da cartunista Posy Simmonds é herdeira direta da heroína realista francesa Madame Bovary, que, com livro homônimo escrito por Gustave Flaubert, inaugurou a escola realista e seu desencanto burguês. A novela gráfica “Gemma Bovery” é o retrato contemporâneo do tédio desta classe, expressando uma observação da sociedade media britânica, não deixando de ser um retrato globalizado. Uma releitura do clássico livro e uma sátira à classe média. A França entra como atração e tributo ao escritor realista, bem como ao encanto que traz sobre os turistas da própria Europa, especificamente a Inglaterra.

A narrativa é contada por Raymond Joubert em tom confessório e obsessivo pela vida de sua vizinha “Madame Bovary” – a semelhança da vida de Gemma com a da infiel e volúvel Emma desperta essa atração sobre o padeiro francês e a mulher inglesa. Os outros personagens constroem o intertextual enredo da heroína burguesa, mas são em tudo arquétipos urbanos conhecidos, com ênfase, por parte da autora, nas conjecturas sociais atuais, que da Inglaterra representam a imprecisa classe média.

Cena da novela em publicação alemã: o tédio da personagem é claro nos desenhos.

Os traços dos quadrinhos são limpos, sombreados, bem contornados, em suma, comuns que com a escrita jornalística e o engendro das situações habituais de que se vale Simmonds, formam uma história dinâmica e assídua – um diferencial a estética descritiva realista de Flaubert. Artimanhas simples para uma novela honesta e humorística.

Gemma Bovery, de Posy Simmonds

120 páginas

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